quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Concurso estimula novos cientistas



Leyla Martins Leong

Quando eu tinha uns sete  para  oito  anos, ganhei de presente de aniversário a coleção completa ( 18 volumes), do “Thesouro da Juventude”. Espécie de enciclopédia, o “Thesouro”, entre outras, tinha a intenção de “estimular o amor à humanidade  através de bons exemplos.  Uma página descreve a terra, o sistema planetário e o cosmos; outra se ocupa dos reinos da Natureza(....) em outra fala dos homens e mulheres célebres, que facilitaram a vida por suas invenções ou a iluminaram por seu pensamento, ou a enobreceram por seus atos” diz o republicano Clóvis
Bevilaqua na introdução à edição brasileira.
Por um descuido dos nossos editores ( a coleção  original é norte-americana), não ficou registrado o ano da publicação, mas pela página 14 dá para sentir a velocidade com que o mundo se desenvolveu e o quanto a ciência avançou de lá para cá. Uma impressionante gravura intitulada “O incomensurável universo”, informa que para chegar à lua o homem teria que fazer uma viagem de 49 dias. A Apollo 11 levou apenas 3  para chegar lá.
Folheando as páginas amareladas do  “Thesouro” da minha infância, o tempo correu para trás e para frente na memória ,ressaltando o conforto do presente e o quanto a ciência sempre esteve a serviço da humanidade para torná-la mais feliz.
Essa constatação me levou aos capítulos em que o livro aborda a vida das pessoas célebres pela nobreza de caráter, pelo posicionamento diante da vida e pela contribuição dada à ciência.
Lembrei-me dos célebres do  Thesouro da Juventude ao ler  a revista “Amazonas faz Ciência” deste mês, editada pela Fapeam – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas.  Na última página, o artigo “Um entusiasta amazônida”, descreve em poucas linhas o perfil de um desses benfeitores da humanidade: o médico Heitor Vieira Dourado ( 1938-2010). Nascido no Pará, Dourado passou a maior parte da sua vida no Amazonas dedicando-se  à pesquisa para a erradicação da malária, doença tropical que em alguns casos pode ser fatal, e que apresentou 300 mil casos no Brasil ano passado, 99% deles na Amazônia Legal.
Como presidente do Conselho Curador da Fundação Amazônica de Defesa da Biosfera – FDB, cargo que ocupou por alguns anos, Heitor Dourado destacou-se pelo incentivo a  projetos de pesquisa científica no Amazonas.
Eis que agora, a FDB cria o Prêmio de Iniciação Científica Heitor Vieira Dourado com o objetivo de estimular estudantes das Ciências da Saúde a seguir carreira nesse campo, com ênfase na pesquisa sobre doenças tropicais e infectologia, especialidades do patrono do concurso, responsável pela formação de muitos cientistas que foram seus alunos nas Universidades do Amazonas e do Pará, onde lecionou.
O concurso que reverencia este grande amazônida premiará trabalhos de conclusão de curso, PIBIC, dissertação de mestrado, tese de doutorado e monografia sobre doenças tropicais como leishmaniose, malária, oncocercose, tuberculose, filarioses, hepatites e outras. O regulamento pode ser acessado pela internet no  site da FDB.

Assassinato à luz do dia na praça de São Sebastião


Leyla Martins Leong

Foi preciso a força de oito criminosos para consumar o assassinato de uma só árvore. E nem era uma árvore daquelas enormes que vivem na floresta. Era uma pequena mangueira urbana que enfeitava e dava sombra aos caminhantes e namorados na Praça de São Sebastião.
Os oito carrascos acordaram cedo na manhã de sábado para executá-la. O horário, de pouco movimento,  teria sido  ideal,  não fossem os olhos atentos dos funcionários da Rede Rio Mar e de alguns vizinhos madrugadores que testemunharam a morte e imediatamente a denunciaram nas redes sociais, uma vez que é impossível qualquer comunicação com órgãos oficiais nos finais de semana.
Encresparam-se as águas dos defensores da cidade, da Natureza e do cumprimento dos  deveres do poder para com os cidadãos. Descoberto o mandante, veio então a explicação (?): a árvore estava doente e por isso deveria morrer. Sem tratamento, sem esperanças. Medida drástica e fatal.
E vieram também as suposições: ela teria sido cortada porque empatava a visão direta do Teatro Amazonas, fato que estaria estressando os ralos turistas que nos visitam e precisam voltar para casa com pelo menos uma foto justamente daquele ângulo  do Teatro; ou ela, coitada, nasceu no lugar errado, atravessada no caminho do Auto de Natal; ou ainda, ela teria sido morta para dar lugar a um novo quiosque de venda de quinquilharias.
O certo é que essa ação criminosa, que antes passava batida para uma população indiferente, agora toma novas  proporções. Tudo dá a entender que despertamos do longo sono da leseira baré que nos impediu de protestar diante de décadas de desmandos que (quase) destruíram a nossa cidade.
Foi assim que sumiu uma escada caracol toda trabalhada do Mercado Adolfo Lisboa e, de lá também, um relógio alemão  enorme que dava as horas de frente para o rio Negro, algumas penteadeiras  e as portas de madeira nobre e cristal, trabalhadas sobre o tema do guaraná,  que separavam o hall do Teatro Amazonas do acesso à plateia. Os paralelepípedos de borracha que forravam algumas calçadas do centro e outras joias da nossa história. Estátuas, fontes, pavilhões e até bondes somem ou mudam de lugar sem qualquer explicação. Projetos param de funcionar, centros de cultura fecham, abrem, são extintos sem que seus gestores se sintam na obrigação de justificar.
Agora o cidadão aprendeu  a cobrar satisfações dos gastos públicos, dos prazos não cumpridos de obras fantasmas como a restauração do Mercado Municipal Adolpho Lisboa e da Biblioteca Estadual que, somados, se estendem por mais de uma década sem explicações convincentes.
Conscientes da importância da arborização para a beleza e saúde de uma cidade que tem tudo para ser feliz, o povo protesta. O replantio de 500 árvores não compensa a morte de uma sequer, pois a Natureza é única em seu equilíbrio. Os gastos exorbitantes com os  trens  da alegria dos viajantes oficiais que dizem estar promovendo a imagem do Amazonas no exterior ( com o nosso dinheiro, é claro) não compensam nem chegam aos pés do efeito positivo da preservação dos bens públicos  e do respeito aos  cidadãos e à cidade. 

Luiz Bacellar partiu vestido de brumas


Leyla Martins Leong

Domingo à tarde o poeta Luiz Bacellar subiu a escada do céu mansamente, com uma estrela tremeluzindo na mão. Vestia seu paletó de brumas, a camisa de neblina e um arco-íris em gravata atado em nó singelo.
Essas imagens  não são minhas, mas do próprio poeta. São trechos  dos poemas “A escada”, em que usa esse elemento  como símbolo de uma partida definitiva e “O poeta veste-se”, ambos publicados em “Frauta de Barro”, seu livro de estreia .
Luiz Bacellar é, sem dúvida, o maior poeta que o Amazonas nos deu. O mais erudito, o mais sofisticado. Publicou pouco, escreveu pouco, não importa: tudo o que  disse é definitivo, belo, eterno.
Conheci Luiz Bacellar no começo dos anos sessenta, na casa do meu avô, onde aos domingos ele e outros jovens poetas se reuniam para ouvir música erudita. Anos depois pude conhecê-lo mais de  perto , nas reuniões na casa do poeta Elson Farias, casado com minha querida amiga Roseli Franco de Sá, prima de Bacellar. 
O poeta com o nosso gato Tigrinho
na rua das Orquídeas (Conj. Tiradentes)
Nos anos oitenta a nossa amizade estreitou-se sendo frequente a presença do poeta em nossa sala de jantar na Cidade Jardim, mais tarde no conjunto Tiradentes e depois na casa da Praça 14.  Trabalhei um tempo no Teatro Amazonas no finalzinho dessa década. Bacellar visitava a minha sala todos os dias no final da tarde. Conversavamos sobre qualquer assunto entre um e outro cigarro. Podia ser sobre um autor, um espetáculo, uma música, uma comida, pessoas ou bichos. Ele sabia muitas coisas.  Às vezes baixava um silêncio. Às vezes abria o livro que sempre trazia na mão e lia um trecho. 
Certo dia ele me pediu um favor. Pretendia  abrir uma conta bancária   e precisava de uma certa quantia (pouca coisa)  para poder realizar essa operação. Uma exigência bancária. Prometi levar o dinheiro no dia seguinte. Ele insistiu que me daria um documento declarando ser meu  devedor. No outro dia apareceu  com um envelope branco na mão. Dentro dele, um texto manuscrito no qual  se comprometia a devolver a quantia que lhe emprestara na data combinada. Logo abaixo, a data, a assinatura e o sinete impresso no lacre vermelho.
 O poeta tinha estilo e refinamento.
Vestia-se com aparente simplicidade, calça e camisa de linho, chapéu panamá, bengala e um indefectível colete, incorporado ao visual com o advento dos shopping-centers refrigerados, onde costumava refugiar-se do calor manauara. No dedo mindinho, o anel com o sinete.
O endereço do poeta era um mistério para muitos. Não costumava receber visitas. Estava sempre em público, caminhando nas ruas , almoçando em restaurantes, na casa dos amigos, ou “filando” a comida  cheirosa e consistente servida aos funcionários da Livraria Valer.
Nos últimos tempos, antes da desgraça abater-se sobre ele, um dos seus lugares prediletos era a livraria Saraiva. Escolhia uma poltrona discreta e ali passava as tardes num paraíso de livros, histórias e autores. Será que tem livros no céu?